Tal renúncia, de acordo com Freud, representaria o alto preço pago para manutenção da civilização hodierna. Hoje, portanto, o ser humano já nasce imerso a toda uma gama de regras e limites que delineiam nossa complexa sociedade atual. E desde cedo terá, então, de aprender a seguir cada uma dessas leis básicas de convivência. Tal aprendizado dá-se principalmente através dos processos identificatórios. Uma vez que, para constituir-se, um ser humano busca, em outros, atributos e modelos para seguir. Este processo de identificação dar-se-ia principalmente nos primeiros anos de vida, em que a criança elege como modelo de conduta, as pessoas mais representativas de sua vida. Pais, familiares, professores, entre outros; em um movimento dialético entre interior e exterior, impressões subjetivas, e estímulos vindos do ambiente. Tudo isto, propiciaria a estruturação da identidade individual do ser humano. E, conseqüentemente, a introjeção de normas e regras imprescindíveis que o possibilitaria tornar-se membro da sociedade humana.
Este processo estruturante, teorizado também por Lacan, como Lei Paterna, implica sumariamente em uma interdição do desejo onipotente da criança. Papel este, desempenhado por uma figura paterna, que entra como terceiro na relação dual entre mãe e filho, a fim de barrar a consumação de desejos incestuosos, impondo, dessa forma, a Lei Primordial a qual seria a base de toda constituição moral e valorativa repassado para a criança. Neste contexto, a figura paterna seria a representação da lei para o indivíduo em sua mais tenra idade, ocupando um posicionamento de principal modelo identificatório para a criança.
Tendo estas considerações em mente, uma ascendente preocupação hoje, são as mudanças culturais e sociais que poderiam, de alguma forma, alterar ou até prejudicar tal estruturação moral sintetizada acima, sendo então, uma das prováveis causas da falta de limites, e da indisciplinaridade, tão comentadas hoje nos comportamentos de crianças e adolescentes. Nesse ínterim, o problema expoente da criminalidade infanto-juvenil também encontraria, na ausência de uma Lei Paterna, uma possível causa.
Sob uma perspectiva histórica, notou-se que a imagem do Pai sofreu, sim, uma desvalorização. Houve um declínio daquela posição autoritária e detentor exclusivo da lei e da ordem. Paralelamente, devido também à multiplicidade de arranjos familiares, e a valorização da mulher no sentido de um movimento de ‘igualdade entre os sexos’; responsabilidades, deveres e direitos que eram atribuídos apenas para o genitor da criança, passaram a ser de responsabilidade mútua de pai e mãe igualmente.
Portanto, pode-se inferir que as modificações históricas e culturais na estruturação social da família e da sociedade em geral, trouxeram consideráveis alterações na Lei Paterna, que hoje, configura-se de maneira diversa daquela conhecida anteriormente em períodos passados. Houve sim, uma mudança, um declínio na Imagem Paterna. Entretanto, esta não se configura em um declínio da Lei do Pai. Uma vez que tal posição, de representante da Lei, tem sido desempenhada por outras pessoas ou instâncias: se não pelo pai biológico, por um padrasto, por um tio ou avô, por uma mãe, por uma professora. E além deles, órgãos e instituições também desempenham hoje, esta representação, seja a instituição escolar; seja os Conselhos Tutelares; seja a instituição judiciária, por meio da Vara da Infância e da Juventude; seja o próprio Estado; e a comunidade em geral.[1]
Sendo assim, podemos dizer que temos hoje, várias instâncias representantes da Lei para crianças e adolescentes que não somente seus pais. Entre elas, destacamos o Estatuto da Criança e do Adolescente, que traz consigo direitos e deveres de propriedade da população infanto-juvenil.
Volta-nos então, a pergunta: se atualmente a função da Lei Paterna pode, sem prejuízos, ser desempenhada por outra pessoa que não necessariamente o pai; por que motivos, hoje se vê a expoente problemática de infrações e violências cometidas por crianças e adolescentes? E ainda, por que um dos assuntos mais preocupantes na atualidade, tem sido a indisciplinaridade e a rebeldia deste feixe da população?
Sobre isto, não há outra explicação, senão dizer que por razões multifatoriais[2], a intervenção da Lei Paterna, não tem sido integralmente efetiva na vida dos indivíduos, causando assim, posicionamentos e atitudes que divergem das normatizações estabelecidas socialmente. Uma vez que, por um lado, há uma intimação para que todo familiar, órgãos e instituições, bem como de toda comunidade, assumam sua parcela de responsabilidade no que tange a garantia os direitos da população infanto-juvenil, conferindo a estes indivíduos um desenvolvimento saudável e próspero. E, por outro lado, infelizmente esta intervenção não tem sido efetiva em nossa atualidade, manifestando uma negligência maléfica, que tem permitido a perpetuação de um contexto infeliz na vida de muitos jovens.
[1] A participação da sociedade em uma forma geral na vida de crianças e adolescentes, se deu após a constituição de 1988, que estabelece um convênio de colaboração mútua entre todos, na tutela “lato sensu” de crianças e adolescentes. É claro que, a convivência experimentada pela criança e, posteriormente, pelo adolescente na escola, com professores, familiares de seus amigos, etc., são determinantes na configuração de suas personalidades na mesma proporção que têm influência dos reais titulares do poder familiar.Ainda que uma série de órgãos e entidades mesmo que particulares, estejam voltados, direto ou indiretamente à essas finalidades, relevante ressaltar, que o feixe de atribuições e por conseguinte, as suas conseqüências, repercutem tão apenas na esfera individual daqueles que legitimamente o detém. Ou seja, ainda que os professores e os pais exerçam quantitativa e qualitativamente influências de variadas naturezas, sobre os alunos (e filhos), os vetores resultantes das ações e/ou omissões que uns e outros incorram, no sentido da negligência ou da imprudência no exercício destas prerrogativas, são evidentemente distintas.
A exemplo, tem-se os resultados na esfera jurídica de excessos de poder correcional por parte dos professores que ocasionam processo criminal, e de outra parte, os pais, que são destituídos do poder parental, sem prejuízo de eventual sanção penal.
[2] Razões estas não abordadas aqui, por não adentrar as especificidades do presente trabalho, suscitando, contudo, questões relevantes para uma próxima oportunidade.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. (1929/1969). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. (1913/1969) In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
FREUD, Sigmund. Algumas conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos. (1925/1969). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago. 1969.
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id (1923/1976). In: Obras Psicológicas Completas. Coord. Ed. de Pedro Paulo de Sena Madureira. 1ª Edição, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago. 1976.
HURSTEL, Françoise. As novas fronteiras da paternidade. Campinas, SP: Papirus, 1999.
LACAN, Jacques. (1957/1958) O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
MARTINS, Andressa Pires (et al). A Lei Paterna e o Paradigma na Construção da Identidade em Crianças e Adolescentes. Relatório Final de Pesquisa Docente, Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (NEDIJ), Universidade Estadual de Maringá, 2010
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